DOENÇA CELÍACA

Doença Celíaca (DCel) é uma intolerância à ingestão de glúten, uma substância contida em cereais como cevada, centeio, trigo e malte. O glúten é uma substância viscosa, constituída por várias proteínas e que confere à farinha do trigo sua elasticidade e capacidade de reter água e gás em seu interior. Algumas destas proteínas estão envolvidas na intolerância ao glúten.

A DCel ocorre em indivíduos geneticamente predispostos e é caracterizada por um processo inflamatório que envolve a mucosa do intestino delgado (trata-se da camada mais superficial do intestino, fundamental para a absorção dos nutrientes), levando à atrofia de suas vilosidades, com consequente disabsorção e uma variedade de manifestações clínicas.

As proteínas do glúten são relativamente resistentes às enzimas digestivas, resultando em derivados peptídeos que podem levar à resposta exacerbada do sistema imune em pacientes com DCel.

As manifestações clínicas da DCel podem envolver o trato gastrointestinal, assim como pele, fígado, sistema nervoso, sistema reprodutivo, ossos e sistema endócrino. A dermatite herpetiforme ocorre em 10% a 20% dos pacientes e é uma manifestação “patognomônica”, ou seja, uma manifestação que, uma vez presente, define o diagnóstico de DCel.

Até recentemente, o diagnóstico de DCel era reconhecido apenas em pacientes com manifestações clínicas típicas ou com elevado grau de suspeita. O diagnóstico geralmente é realizado em crianças com a síndrome disabsortiva, ou seja, com diarreia e desnutrição, tendo sido afastadas outras possíveis causas.

Após o surgimento de testes sorológicos de alta acurácia (exames de sangue específicos e muito precisos no diagnóstico), bem como com a maior atenção dos médicos para manifestações atípicas da DCel, têm aumentado os diagnósticos também em adultos. A prevalência é estimada em torno de 1% da população geral como sendo portadores da doença. Portanto, para que se tenha ideia da magnitude deste problema de saúde, pode-se estimar em dois milhões de brasileiros celíacos. Mais que a população de Curitiba, por exemplo.

Há importante predisposição genética nos pacientes com DCel, caracterizada pelos marcadores de superfície HLA-DQ2 e HLA-DQ8. O glúten interage com os marcadores HLA, causando uma resposta imune anormal da mucosa, acarretando lesão tecidual.

Um estudo de revisão demonstrou que para cada paciente diagnosticado como sendo portador de Dcel, até 76 podem não ter sido diagnosticados. Ou seja: é como se apenas cerca de 26 mil brasileiros em dois milhões de prováveis portadores tenham sido diagnosticados. De fato, um estudo indica que mais de 36% dos pacientes com DCel haviam recebido diagnóstico de SII (síndrome do intestino irritável) previamente, o que demonstra as dificuldades diagnósticas devido aos sintomas serem pouco específicos.

Doença celíaca não tratada tem alta morbimortalidade. Anemia, infertilidade, osteosporose e câncer estão entre os riscos de complicação em pacientes sem tratamento. Dentre as mais temidas complicações, destaque-se o linfoma intestinal.

A investigação diagnóstica de DCel deve ser realizada antes da introdução do tratamento, que consiste em introduzir uma dieta estritamente isenta de glúten. É importante salientar que a dieta pode alterar negativamente os resultados dos testes sorológicos e melhorar a histologia, ou seja, o aspecto do tecido quando visto ao microscópio.

O diagnóstico de DCel nem sempre é fácil de ser realizado. Em torno de 10% dos casos, há dificuldade de diagnóstico por achados discordantes entre sorologia (exames de sangue), clínica (sinais visíveis ao exame fisico e sintomas) e histologia. O diagnóstico de DC deve ser cogitado em todo paciente com diarreia crônica, distensão abdominal, flatulência, anemia por deficiência de ferro, osteosporose de início precoce, elevação de transaminases (enzimas que se elevam no sangue e indicam lesão do fígado), familiares de primeiro e segundo graus de pacientes com DCel, SII, hipocalcemia, assim como na deficiência de ácido fólico e vitaminas lipossolúveis (caso das vitaminas A, D, E e K).

Além disso, DC está associada a diversas doenças como diabetes melito tipo I (insulino-dependente), hipo e hipertireodismo, síndrome de Sjögren, cirrose biliar primária, hepatite autoimune, autismo, depressão, epilepsia, ataxia cerebelar, infertilidade, puberdade tardia, deficiência de IgA seletiva, Síndrome de Turner, Síndrome de Down e neuropatia periférica. Não há justificativa na literatura, no momento, para rastreamento populacional para diagnóstico de DCel.

Os marcadores utilizados são os anticorpos antiendomísio (EMA) e os anticorpos antitransglutaminase tecidual (anti-tTG), pois são sensíveis e específicos para o diagnóstico inicial de DCel. Diversos estudos evidenciaram alta correlação de seus resultados, não sendo necessária a pesquisa de ambos. O desempenho da pesquisa de anticorpos antigliadina (AGA) não é comparável aos testes supracitados e está em desuso. Os testes sorológicos são os responsáveis pelo reconhecimento de que a DCel não é rara, mas pouco diagnosticada. Teste sorológico positivo sugere o diagnóstico de DCel, mas a biópsia duodenal ainda é o padrão-ouro, pois uma sorologia positiva pode se tornar negativa após 6 a 12 meses da introdução de uma dieta isenta de glúten. A sensibilidade dos marcadores sorológicos está relacionada ao grau de dano histológico na DCel, tanto no momento do diagnóstico, como no acompanhamento da aderência à dieta. É alta a sensibilidade dos testes sorológicos quando houver atrofia vilosa total e diminuição progressiva desta, à medida que os achados histológicos estão menos alterados. Logo, a sorologia negativa não exclui o diagnóstico de DC. Testes sorológicos podem ser usados para avaliar a adesão do paciente à dieta isenta de glúten. Anticorpos ficam negativos após 3-12 meses de dieta.

Moléculas

O antígeno contra o qual os anticorpos antiendomísio são direcionados é a enzima transglutaminase. O anti-TG é o anticorpo contra a transglutaminase tecidual. Algumas doenças podem interferir nos resultados, levando aos falsos-positivos, como na doença hepática crônica, insuficiência cardíaca, artrite, diabetes melito e doença inflamatória intestinal. Essa interfência têm diminuído com os testes de última geração. Isoladamente, é o mais eficiente teste sorológico para detecção de DCel.

Doença Celíaca

O diagnóstico de DCel e a introdução de DSG para toda vida não devem ser firmados sem achados histológicos compatíveis, independentemente do resultado dos testes sorológicos. Entretanto, também não é aconselhável firmar diagnóstico apenas a partir do diagnóstico histológico, pois a doença não compromete de modo uniforme o intestino e as alterações não são exclusivamente observadas na DCel. Apesar desses problemas, a biópsia intestinal ainda é considerada o padrão-ouro do diagnóstico. Pacientes que apresentam sorologia persistentemente positiva e biópsia negativa, provavelmente têm DCel latente. O número adequado de fragmentos de biópsia da segunda porção duodenal ou mais distal está entre 4 e 6. Estudo recente demonstrou que quatro biópsias podem fazer o diagnóstico de DCel em 100% dos casos. As alterações mucosas têm padrão salteado, bem demonstrado em magnificação, principalmente se associado a cromoendoscopia

O patologista deve estar familiarizado com o espectro das alterações compatíveis com DCel; deve avaliar e descrever a infiltração linfocitária, padrão das criptas e a atrofia vilositária. A classificação é feita pelos critérios de Marsh modificados e de Oberhuber e colaboradores. A classificação proposta por Marsh em 1992 é a mais utilizada ainda hoje. Os sintomas do paciente frequentemente correlacionam-se com o grau de lesão tecidual, conforme descrito abaixo:

  • Marsh I: lesão infiltrativa; arquitetura vilosa e mucosa normal; aumento de LIE (>30-40 linfócitos por 100 enterócitos contados).
  • Marsh II: lesão hiperplásica; semelhante ao Marsh I, mas apresenta também hiperplasia de criptas.
  • Marsh III: lesão destrutiva; subdividido em
    IIIa – atrofia vilosa parcial;
    IIIb – atrofia vilosa subtotal;
    IIIc – atrofia vilosa total.

O aumento de linfócitos intraepiteliais (LIE), com arquitetura mucosa normal pode ser observado em doenças autoimunes, como o lúpus eritematoso sistêmico (LES), a artrite reumatóide (AR), a tireoidite de Hashimoto, em pacientes em uso de anti-inflamatórios não-hormonais (AINES) e na apresentação inicial de DCel e na DCel latente.

Pacientes com DCel que apresentam apenas aumento de LIE, sem alterações na arquitetura da mucosa, podem ser sintomáticos e estão sob risco aumentado de osteosporose.

Foram publicados estudos sugerindo que biópsias das primeiras porções do duodeno (bulbo duodenal) parecem ser adequadas e, inclusive, este pode ser o único local a demonstrar atrofia vilositária. Em pacientes que já iniciaram com DSG, mesmo antes da biópsia de confirmação, com alta suspeição de DCel e sorologia negativa, pode ser realizado teste com dieta contendo glúten, neste caso por pelo menos quatro semanas e, posteriormente, a biópsia. Porém alguns pacientes são respondedores tardios e podem levar anos para alterar a histologia. Deve ficar bem claro que a DSG só deve ser estabelecida após o diagnóstico firmado de DCel.

A inspeção da mucosa duodenal, durante a endoscopia digestiva alta é importante e pode demonstrar achados relevantes. O endoscopista deve estar atento aos achados de atrofia vilosa, apesar deste exame ter baixa sensibilidade. Durante a endoscopia podem ser identificados os seguintes achados, sugestivos de DCel: pregas mucosas serrilhadas, padrão em mosaico, pregas achatadas, menor tamanho e desaparecimento das pregas com máxima insuflação.

Pacientes que realizarem endoscopia digestiva alta (EDA) por emagrecimento, anemia, diarreia e aqueles com risco aumentados de DCel (SII, DII, doença hepática crônica, síndrome de Down, várias doenças autoimunes, principalmente diabetes melito do tipo 1), devem realizar biópsia duodenal.

Podem ser observadas anormalidades na mucosa de pacientes com DCel sem diagnóstico prévio, através do exame da cápsula endoscópica, para investigação de anemia por deficiência de ferro.

O duodeno, avaliado por endoscopia digestiva alta (EDA), pode apresentar-se inteiramente normal, enquanto no intestino proximal e distal são observados achados clássicos de DCel, quando avaliados por cápsula endoscópica.

Recentemente foi publicado artigo que demonstra que EDA com magnificação e alta resolução permite clara visualização do padrão das vilosidades duodenais (sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo e negativo próximos a 100%). O sistema OBI pode ter papel na otimização da acurácia da EDA na DCel.

Em suma: o diagnóstico de DCel é complexo, especialmente nos pacientes assintomáticos ou com manifestações atípicas. A biópsia intestinal é necessária para o diagnóstico mesmo que a sorologia seja positiva. No entanto, os achados histológicos não são específicos, por isso o diagnóstico só pode ser estabelecido após a correlação clínica. Ainda hoje, a maioria dos pacientes com DCel não tem esse diagnóstico, apesar de nos últimos anos a prevalência ter aumentado em função do maior grau de suspeição e melhor acurácia dos testes sorológicos. Não está bem estabelecido o significado do grande número de pacientes sem diagnóstico, assim como daqueles pacientes que apresentam apenas sintomas extraintestinais ou não tenham uma apresentação clássica.